E D O N

Poema como projeto

jul | 2022 por Edon

O quanto de engenharia há, de fato, nos poemas de João Cabral de Melo Neto? Vejamos um exemplo:

 

O engenheiro

 

A Antônio B. Baltar

 

A luz, o sol, o ar livre

envolvem o sonho do engenheiro.

O engenheiro sonha coisas claras:

superfícies, tênis, um copo de água.

 

O lápis, o esquadro, o papel;

o desenho, o projeto, o número:

o engenheiro pensa o mundo justo,

mundo que nenhum véu encobre.

 

(Em certas tardes nós subíamos

ao edifício. A cidade diária,

como um jornal que todos liam,

ganhava um pulmão de cimento e vidro).

 

A água, o vento, a claridade

de um lado o rio, no alto as nuvens,

situavam na natureza o edifício

crescendo de suas forças simples.

 

Publicado no livro “O engenheiro” (1945).

 

In: MELO NETO, João Cabral de. Obra completa: volume único. Org. Marly de Oliveira. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, p. 69-70. Biblioteca luso-brasileira. Série  brasileira.

 

Neste caso é impossível deduzir o projeto a partir de seu resultado, pois o poema é em si o projeto. A construção na realidade conforme seu modelo já é o modelo constituído. O processo é indissociável. Por isso o que se pode discutir para a poesia não é o desenho, mas o engenho, como uma figura modelável que se fixa conforme atua na matéria sonora.

 

Vejamos o exemplo de Dom Quixote, seu engenho se define como as invenções de seu imaginário que passam a constituir a sua própria imaginação, tal um mecanismo que se volta a si, transfigurando-se como uma realidade mais real que o real. O engenho converte moinhos de vento em gigantes, com os quais luta heroicamente segundo a realidade lhe fere.

 

Mas – no que se refere ao poema acima – o que tomaria o lugar do desenho projetado é a ideia, ou um conjunto de ideias que orbitem um tema autoproposto, porque as ideias são a entidade abstrata que não se compõe em uma forma, mas que sugere um jogo de movimentos que se autorreferem segundo o substrato psicofísico ao qual se aderem. E isto é o engenho: a ideia que amealha sentidos, significados, correspondências, paralelismos, inversões, simetrias, ondulações, perturbações etc., configurando imagens, ressonâncias, consonâncias, sinestesias, aliterações, rupturas etc., a partir da intensidade de suas tensões. Uma ideia só é ideia se afirmar a possibilidade de sua subversão, o que é impossível a uma forma, modelo ou projeto.

 

O engenheiro é mais quixotesco do que cartesiano, até mesmo no apuro de sua racionalidade, pois não divide o mundo entre a realidade e o sonho, mas faz do sonho o centro de que origina os meios de como se pensa, como a ideia que esclarece, que é a claridade que torna a cidade vislumbrada no seio da natureza, como o mistério dúbio, tortuoso, misturado consigo no fundo, no anteparo, no contraponto tenso de seu limite linear, contínuo, simples, imperturbável…

 

Sem sombra não há luz, sem tensão não há arte, sem ideia não há poema.

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