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Drummond e a luta com a palavra

jul | 2022 por Edon

Não! Não se trata de luta ideológica, fazer da palavra estandarte de luta política. Nem a busca pela retórica perfeita que encante plateias ávidas de alegria. Mas, sim, a luta existencial que a palavra figura. É a vida que nos assalta com mil armadilhas e nos fere atravessada de crueldade, com raras gotas de amizade, farta, sim, de incompreensão, em que a palavra arrancada como quem grita é somente a resposta, desejando-se entendida, conforme se comunica, se abre ofertada.

 

Carlos Drummond de Andrade (1902-1986, Itabira-MG) em seu poema “O Lutador” (escrito abaixo), publicado em seu livro “José” de 1942, pela então editora José Olympio, apresenta a luta do poeta para forjar sua expressão poética por meio de palavras com vontade própria, em que seus significados lhe facultam a concretude de um ente, em suas contradições de sentido, em suas afecções de fenômeno, em suas distorções de comunicação, com que sua condição de objeto ganha contornos subjetivos.

 

O Lutador

 

Lutar com palavras
é a luta mais vã.
Entanto lutamos
mal rompe a manhã.
São muitas, eu pouco.
Algumas, tão fortes
como o javali.
Não me julgo louco.
Se o fosse, teria
poder de encantá-las.
Mas lúcido e frio,
apareço e tento
apanhar algumas
para meu sustento
num dia de vida.
Deixam-se enlaçar,
tontas à carícia
e súbito fogem
e não há ameaça
e nem 3 há sevícia
que as traga de novo
ao centro da praça.

 

Insisto, solerte.
Busco persuadi-las.
Ser-lhes-ei escravo
de rara humildade.
Guardarei sigilo
de nosso comércio.
Na voz, nenhum travo
de zanga ou desgosto.
Sem me ouvir deslizam,
perpassam levíssimas
e viram-me o rosto.
Lutar com palavras
parece sem fruto.
Não têm carne e sangue…
Entretanto, luto.

 

Palavra, palavra
(digo exasperado),
se me desafias,
aceito o combate.
Quisera possuir-te
neste descampado,
sem roteiro de unha
ou marca de dente
nessa pele clara.
Preferes o amor
de uma posse impura
e que venha o gozo
da maior tortura.

 

Luto corpo a corpo,
luto todo o tempo,
sem maior proveito
que o da caça ao vento.
Não encontro vestes,
não seguro formas,
é fluido inimigo
que me dobra os músculos
e ri-se das normas
da boa peleja.

 

Iludo-me às vezes,
pressinto que a entrega
se consumará.
Já vejo palavras
em coro submisso,
esta me ofertando
seu velho calor,
aquela sua glória
feita de mistério,
outra seu desdém,
outra seu ciúme,
e um sapiente amor
me ensina a fruir
de cada palavra
a essência captada,
o sutil queixume.
Mas ai! é o instante
de entreabrir os olhos:
entre beijo e boca,
tudo se evapora.

 

O ciclo do dia
ora se conclui
e o inútil duelo
jamais se resolve.
O teu rosto belo,
ó palavra, esplende
na curva da noite
que toda me envolve.
Tamanha paixão
e nenhum pecúlio.
Cerradas as portas,
a luta prossegue
nas ruas do sono.

 

A palavra não é instrumento que dá forma ao grito, mas um inimigo que se dobra após um esforço hercúleo que, por vezes, um suspiro representa na força de seu impacto, quando, de fato, é você quem se curva. O que, ao se perceber, é a razão de se sujeitar no ponto de compreender o lugar da fuga. O eu-objeto como corpo à mercê de ventos transcendentes ao que supomos do mundo.

 

Seu ritmo de sedução, rebolando ou oscilando hipnótico, ora cristalino na unidade caricata e vã da rima com seu discurso submisso, ora nebuloso na dubiedade que declara a ausência de formas com que fluem as palavras pelo poema, conforme as delimita em uma figura contrária, de que duvida, contudo. Talvez aí se justifique iludido com as conquistas possíveis do embate, com que segue incerto pelos limites da realidade e do sonho, que atravessa cerrado…

 

Decerto, a palavra é parte de nós mesmos, cheia de contrários e avessos, e o poeta como quem namora um espelho, sem encontrar sua imagem narcísica, nem sua sombra pelo que se envereda à margem, mas o estranho de si, desdobrado como outro que se quer livre, que se debate inconsciente, feito louco ou fera ou mago que, em um instante, se nota algo humano.

 

Por mais que vã, lutar com as palavras é lutar por sua humanidade.

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