E D O N

Trecho:

Faz dias que estou deitado na cama com uma pressão insuportável na cabeça. Quem já ficou um dia inteiro na cama sabe o que é isso. Todo o sangue se concentra no cérebro como numa piscina em que se criam ondas conforme seu pensamento não pensa, mas lateja batendo e rebatendo a força das águas nas bordas da caixa craniana. Esse é apenas um dos sintomas. Outro é um dos rins que começa a doer com o peso do corpo o sufocando entre o intestino e o colchão, que já parece uma massa de argila deformada à forma de um corpo. O meu corpo de 85 kg ininterruptamente distribuídos por este quadrilátero de algodão e poliéster. Fora as pernas cujas veias se entopem pela falta de movimento, doendo como um cadáver cheio de tromboses, circulando o sangue ao ritmo dos engarrafamentos de intermináveis quilômetros. O que forçosamente me identifica e me solidariza com a cidade e seu organismo tão propício a um ataque de pânico. Pois a contradição de não conseguir me mover, ou não conseguir sair desta cama, com a ansiedade de chegar a algum lugar ou viver algum episódio maravilhoso que se me imponha aumenta a pressão do sangue em minha cabeça, acelerando o coração que pulsa como uma pilha de desejo e desespero. Uma vontade de já estar lá sem sair daqui, como se a angústia fosse todo o caminho aonde se quer chegar. Como se o caminho fosse todo o motivo de não ter forças para se levantar e enfrentar uma luta já perdida. Uma conclusão por demais torpe. Insuportável como brincar na areia do deserto, perdido entre dunas infinitas e o calor escaldante, só aliviado quando um oásis se sugere na voz que ecoa pela casa e me chama para o jantar, que matará a fome desse peregrino das ideias exaustas.

Então, finalmente, me levanto para confirmar o meu ciclo vicioso de comer e dormir e cagar, não necessariamente nesta ordem, mas segundo estes pontos inelutáveis. Quando ouço de novo mamãe estrondando sua voz, totalmente desesperançada de qualquer reviravolta que me traga de volta ao mundo, que seu filhinho se torne alguém que cumpra deveres e exerça direitos como constituir casa, família e ordenados que alimentem bocas famintas. Ou simplesmente a liberte deste castigo de ter um filho com seus trinta e tantos anos preso ao rabo de sua saia, ou moribundo como um velho de dias contados que não suporta mais a própria existência. O que pra ela é muito triste, pois ver o filho perder a juventude, enterrado numa cama dia e noite, saindo apenas para as necessidades básicas não é algo de que se orgulhe ou lhe anime a viver. Fora o cheiro que sai do meu quarto quando ouso abri-lo. É uma mistura de suor, mofo e delírio como se meu quarto fosse uma prisão imunda para um preso voluntário.

Ela realmente murmura. Eu percebo às vezes em seus olhos tão secos e mórbidos o quanto se julga merecedora deste castigo, tudo porque nos idos dos anos 70 abortou um menino que provavelmente seria o arrimo que guiaria a família. Fato que eu soube, não me recordo quando nem como. Acredito que tenha sido ela mesma que me confessara, por alguma conversa que agora me escapa a razão, quando ela naturalmente desabafou como se desabafa a um cúmplice.

E eu sabia que sua culpa era uma bobagem, porque minha condição nada tinha a ver com seus atos. Talvez se o tivesse feito comigo sua vida agora estivesse maravilhosa. E eu, provavelmente, lhe agradeceria onde quer que estivesse, pois não estaria agora preso a essa cama maldita, que tanto adoro por me aguentar sem reclamações, por me amar como ninguém jamais me amou. Esta cama que se deforma para me sustentar o mais confortavelmente possível, cumprindo até as últimas consequências a razão de sua existência, de sua utilidade de ser cama. Ela, eu reafirmo, é a única coisa com a qual convivo que sabe a que veio. A minha cama. O meu ventre de quatro pernas cuja matéria provém de alguma árvore ancestral, da qual agora me levanto, como já disse, abrindo a porta do meu quarto para sentir a luz da sala me invadir os olhos como se o sol estivesse ali, seguindo com passos cansados até o banheiro, onde adentro e me tranco para lavar o rosto, me arrumar um pouco, tentando ao menos um aspecto de saúde ou sanidade.

Ao sair, mamãe me espera com sua expressão resignada.

― Está pronto. Você ouviu? Não vou mais chamar.

        ― Estou aqui, não estou?

        ― É. Você está.

Esse seu jeito irônico de dizer, de alguma maneira, me feri mais do que eu quero acreditar, mais do que eu suponho poder. Está claro que ela me quer longe de sua vida. O que é justo. Me colocar no mundo já foi favor demais. Ela tem seu direito de me abandonar.

Eu então faço o que sempre faço. Esboço uma animação qualquer no rosto. Um sorriso basta. E digo meus planos para os próximos tempos.

        ― Bem, eu estive pensando. Acho que vou arranjar um emprego. É. Acho que sim.

        ― Você acha?

Ela não deixaria a ironia por um segundo sequer. Ela talvez não fosse engolir dessa vez a minha tentativa de ludibriar seus ouvidos cansados.

        ― Eu estou me sentindo melhor hoje e acredito que serei capaz de me qualificar para qualquer vaga que se divulgue nos jornais da cidade.

        ― Se você acredita, então acontecerá.

E assim ela zomba conforme me mede o aspecto um tanto quanto destroçado. A barba malfeita. Na verdade, bem definida em sua grande escala. Também se refere ao meu perfume de jaula, aquele cc que transborda a camisa e causa náuseas. Também a cueca que aparece rasgada na altura da cova. Além do short cujo odor é de mijo ressequido, daqueles que se acumulam passados alguns dias de banhos não tomados. Realmente, um pouco de urina sempre escapa após o ato pelo tecido da cueca, às vezes, miseravelmente escorrendo uma gota pela perna. Uma lástima!

        ― Eu farei alguma coisa. A senhora pode ficar sossegada. Não precisa se preocupar.

― Ainda bem que você disse. Agora eu fico mais tranquila. Não preciso chamar a guarda nacional, nem o corpo de bombeiros, nem o manicômio. Você disse que está bem e eu confio em você, em cada uma de suas palavras.

Eu sei que é a palidez o que mais a incomoda. Minha pele tem o tom dos cadáveres e isso sempre causa uma má impressão em qualquer pessoa que converse com a gente e tenha a sensação de que conversa com os mortos. De fato, conversar comigo não difere muito do que conversar com os mortos. Normalmente, eu mal respondo, mal reajo às frases a mim dirigidas como desabafos, desses de quem se senta ao túmulo de um ente querido e prega suas lamentações e confissões das mais inapropriadas.

― Filho, eu preciso te comunicar uma coisa séria.

― Sim. Estou pronto.

Eu respondo como quem não se importa e apenas finge que se importa para que ela finja que acredita em meu repentino vigor. Por isso, sentado na cabeceira da mesa, posição apropriada ao dono da casa, eu garfo pedaços de bife, bem arrumados no prato, e os mastigo sentindo o caldo descendo pela garganta, seguido do refrigerante que tudo refresca até o fundo do estômago, onde parece haver sinal de vida.

― As coisas estão apertadas. O dinheiro pros meus remédios é pouco. E a aposentadoria que seu pai me deixou é suficiente apenas para mim. Você está entendendo?

Quando percebo que ela fala realmente sério.

        ― Você está entendendo?

Esta insistência me irrita.

        ― Você está entendendo?!

        ― Estou.

Eu respondo naquela atmosfera tensa, propícia a qualquer decisão abrupta por parte dela, alguma espécie de explosão de ira. Embora eu prefira a corriqueira ironia que significa simplesmente que ela sabe tudo e que nada irá mudar. Eu me acostumei a esta postura um tanto quanto pragmática. Mas esse seu tom grave de agora me soa como a trombeta do apocalipse.

        ― Você, já é um homem…

Sim. Pelo menos no que diz respeito à anatomia e às obrigações financeiras. Sim, eu sou um homem.

        ― Você precisa seguir seu rumo.

Sim, mamãe, eu sei disso desde os dezoito anos quando nas reuniões de família todos me interrogavam sobre o que fazia para ganhar a vida. E eu sempre tinha a vontade de responder que não ganhei a vida. Eu a perdi numa aposta com a morte, rindo em seguida como eu ri quando vi a morte no “Sétimo Selo” de Bergman. Eu a achei hilária.

        ― É muito duro, pra mim, dizer isso. Mas é que você não me deixa opção.

Eu termino de comer e me levanto, decidido a me retirar aos meus aposentos, como se nada tivesse acontecido ou ouvido durante aquele jantar rotineiro, à espera de que mamãe se recolha ao conforto do sofá e se fixe a sua telenovela favorita. Contudo, ela me surpreende e me empurra para dentro do banheiro com uma força que eu desconhecia, originária de uma raiva acumulada por muito tempo, por muitas tentativas de controle e silêncio. Ela me arranca as roupas, as rasga literalmente enquanto me lança para debaixo do chuveiro, que ela aciona na temperatura mais quente possível para que toda a crosta de sujeira se desgrude de meu corpo inerte. Ela me ensaboa como se a um bebê, como a um imprestável incapaz de se limpar adequadamente.

Eu mal enxergo com o rosto colado à parede onde o frio do azulejo amortece a bochecha enquanto sinto ela me esfregar uma esponja de aço que trouxera da cozinha e me arear as costas como se eu fosse uma panela que precise de brilho, em que fosse possível o brilho de algum caráter oculto. E segue sem palavras, mas grunhidos como quem segura um choro, me secando o corpo com a toalha a tal fricção que me arde todo.

Eu não gemo; nada reclamo. Eu aceito ela me arrastar nu pelo braço até o meu quarto onde me atira as roupas: uma calça jeans, uma camiseta branca, cueca nova e meias novas, que acabara de comprar, e o único tênis que eu tenho.

        ― Se vista logo. Eu te espero na sala.

Eu obedeço. Me apronto e saio. Na sala, eu encontro uma cadeira posicionada ao centro, bem debaixo do lustre, que nos iluminara muitas ceias de Natal. Mamãe está de pé ao lado e possui numa das mãos uma tesoura. Então, me convida a sentar. O que eu faço de maneira hesitante. Ela corta meus cabelos e com uma gilete faz minha barba, de maneira tão rápida e brusca, que eu temo: não o resultado daquele trabalho amador, mas a volúpia com que a lâmina passa pela jugular.

        ― Agora meu filho vai ficar bonito e cheiroso.

Suas palavras me soam carinhosas, mas também assustadoras. Ela exibe certa perversão, estranha para mim, que sempre a vi como uma mulher frágil, resignada, religiosa, disposta a aceitar qualquer jugo transcendental. Ela: cujos anos de carteira assinada não passavam de 5, quando fora uma hábil tecelã reconhecida pelas maiores empresas de tecidos da região, falidas a maioria nos anos 80.

        ― Pronto. Você está pronto.

Sim, eu estou pronto.

― Agora, preste atenção. Eu vou falar só uma vez. Vá ao seu quarto, pegue suas coisas e as coloque na sua mochila.

        É notório seu esforço para parecer forte e determinada, já que desde seu casamento se tornara uma obediente dona de casa, por décadas sem iniciativa digna de nota, exceto os momentos em que lança suas frases espirituosas:

        ― Filho, às vezes um mal é um bem.

Engraçado, porque ela sempre diz essas coisas quando vê na tv um quadro meloso sobre as misérias e superações de alguma família brasileira. Mas nunca para um contexto em que eu esteja inserido. Então, parece que chegara a hora.

Eu enfio na mochila as coisas que acredito necessárias e me dirijo à entrada de casa onde ela me espera impaciente. De fato, ela me quer longe dali o mais depressa possível. Coisa que nunca imaginei. Mamãe com tamanho desprezo por mim, impiedosa à minha vontade de apenas continuar como uma planta que se nutre de sol e água e jamais deixa de ser o que é: uma paisagem. Era isso o que eu me tornara. Obra revolucionária para qualquer pintor que simplesmente me retrate no caos em que habito, com livros jogados por todos os lados, um criado-mudo onde papéis e mais papéis com anotações dispersas no tempo sobre acontecimentos ou delírios madrigais se acumulam, e um travesseiro retorcido num canto espectral. É isso: meu mundo particular dinamitado, desmanchado apenas por minha ausência, agora decretada em letras garrafais:

― FORA DAQUI!

Ordem assertiva e ofensiva que seus olhos marejados contradizem; como quem se despede de um fantasma que ama, mas já a atormentou demais. E eu a entendo. Tanto que não tento. Não procuro dissuadi-la de sua decisão, nem me magoo, mas me entristeço como a folha que ao se desprender da árvore é levada pelo vento.

Ao passar pela porta, escuto esta bater atrás de mim, talvez para reiterar o que tão dolorosamente se impingiu. Eu, por minha vez, não me volto para trás. Aceito a encruzilhada que nos separa nessa noite de outono em que ar parece mais frio do que o normal.

© 2022 por Edon